Consulente:
Assembleia Municipal de Lagos
Data: outubro/2024
Palavras-Chave:
Questão:
A Consulente solicita Parecer, pedindo “[e]sclarecimentos sobre impedimentos da participação do Sr. Presidente da Câmara em assuntos da Empresa Municipal Lagos-em-Forma”.
Discussão:
Nos termos do disposto no artigo 239.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (breviter CRP), a organização das autarquias locais compreende uma assembleia eleita dotada de poderes deliberativos e um órgão executivo colegial perante ela responsável.
Em concretização, a Câmara Municipal é o órgão executivo colegial do Município, sendo constituída por um Presidente e por Vereadores – cfr. artigos 56.º da Lei n.º 169/99, de 18.09 (breviter, LAL) e 6.º da Lei n.º 75/2013, de 12.09 (doravante, RJAL).
Por seu turno, a Assembleia Municipal é o órgão deliberativo do Município e é constituída por membros eleitos diretamente em número superior ao dos Presidentes de Junta de Freguesia (cfr. artigo 42.º da LAL), devendo a Câmara Municipal fazer-se representar, obrigatoriamente, nas sessões da Assembleia Municipal, na pessoa do seu Presidente, nos termos do n.º 1 do artigo 48.º da LAL e alínea r) do n.º 1 do artigo 35.º do RJAL.
Ora, “Eleitos Locais” são, nos termos do disposto no artigo 1.º, n.º 2 da Lei n.º 29/87, de 30.07, na sua redação atual (breviter, EEL), os membros dos órgãos deliberativos e executivos dos municípios e das freguesias.
No caso vertente, analisar-se-á se o Senhor Presidente da Câmara Municipal de Lagos, que é também Presidente do Conselho de Administração da Empresa Municipal Lagos-em-Forma, E.M., S.A., com relações contratuais com o município, poderia ter participado na discussão e votação de determinadas propostas camarárias.
Vejamos:
Neste âmbito, é mister analisar, antes de mais, o Regime Jurídico da Atividade Empresarial Local e das Participações Locais, aprovado pela Lei n.º 50/2012, de 31 de agosto.
Ora, aquele diploma refere que são participações locais todas as participações sociais detidas pelos municípios, enquadrando-se, como tal, neste âmbito, a Empresa Municipal Lagos-em-Forma, E.M., S.A., empresa detida a 100% pelo Município de Lagos.
E, os membros do órgão de administração das empresas locais, nos termos do n.º 1 do artigo 26.º da referida Lei são nomeados pela sua assembleia geral, competindo, por outro lado, ao órgão deliberativo da entidade pública participante designar o fiscal único da empresa local, sob proposta do órgão executivo (cfr. n.º 3 do artigo 26.º da Lei n.º 50/2012, de 31 de agosto).
Nos termos do n.º 1 do artigo 27.º da referida Lei, as entidades públicas participantes podem delegar poderes nas empresas locais, desde que esta faculdade conste expressamente na deliberação que determinou a sua constituição e nos respetivos estatutos, o que, in casu, se verifica. Aliás, refere o n.º 3 do artigo 5.º-A dos Estatutos da Empresa Municipal Lagos-em-Forma que a delegação de poderes se efetua mediante Contrato-Programa.
Dito isto, é mister aferir se se verifica algum impedimento para que o Presidente do Conselho de Administração da Empresa Municipal ora em causa, desde 2013, seja o Presidente da Câmara Municipal que detém participações sociais na referida empresa, enquanto entidade pública participante, nos termos e para os efeitos do artigo 5.º da Lei n.º 50/2012, de 31 de agosto.
Nessa senda, analisar-se-á agora o Regime do Exercício de Funções por Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos, na sua redação atual, aprovado pela Lei n.º 52/2019, cujo cfr. al. i) do n.º 1 do artigo 2.º, n.º 1, al i), configura como cargos políticos os cargos dos membros dos órgãos executivos do poder local. Por sua vez, o artigo 6.º do referido diploma refere que os titulares de cargos políticos exercem as suas funções em regime de exclusividade, sendo o seu exercício incompatível com quaisquer outras funções profissionais, bem como com a integração em corpos sociais de quaisquer pessoas coletivas de fins lucrativos, com exceção da integração em órgãos ou conselhos consultivos ou fiscalizadores de entidades públicas [cfr. alínea b) do n.º2 do artigo 6.º da Lei n.º 52/2019].
Ainda, o artigo 7.º da Lei n.º 52/2019 estipula as condições do exercício do mandato dos titulares dos órgãos das autarquias locais, mais referindo que, para além do exercício do respetivo cargo, os vereadores em regime de meio tempo ou em regime de não permanência e os titulares dos órgãos executivos das freguesias em regime de meio tempo ou em regime de não permanência podem exercer outras atividades, desde que as declarem nos termos da lei, sendo que tal não prejudica a integração dos titulares dos órgãos do município nos órgãos sociais das empresas do respetivo setor empresarial local – que, a contrario, permite que também os restantes titulares dos órgãos das autarquias locais integrem os órgãos sociais das empresas do município. Ainda que assim não fosse, a alínea b) do n.º 1 do artigo 6.º da Lei n.º 52/2019, referido anteriormente, permite-o.
Não obstante, o n.º 1 do artigo 30.º da já referida Lei n.º 50/2012, de 31 de agosto é perentório ao proibir o exercício simultâneo de funções, independentemente da sua natureza, nas entidades públicas participantes e de funções remuneradas, seja a que título for, em quaisquer empresas locais com sede na circunscrição territorial das respetivas entidades públicas; sendo este o caso – o de as funções que o Senhor Presidente da Câmara Municipal exerce na empresa local Lagos-em-Forma, E.M., S.A., serem funções remuneradas -, este terá, impreterivelmente, de optar por um dos cargos.
Porém, entendimento diferente sufragar-se-á caso as funções não sejam remuneradas.
In casu, o Senhor Presidente da Câmara Municipal, participou, com intervenção ativa na (i) sessão ordinária de junho de 2023, na discussão da proposta de designação do Fiscal Único da empresa municipal Lagos-em-Forma, E.M., S.A., bem como da discussão da proposta de Contrato-Programa com transferência de gestão e delegação de poderes a celebrar entre a Lagos-em-Forma, E.M., S.A., e o Município de Lagos; (ii) na sessão ordinária de fevereiro de 2024, na discussão e designação do Fiscal Único da empresa municipal Lagos-em-Forma, E.M., S.A.; (iii) na sessão ordinária de junho de 2024, na discussão da proposta de renovação do Contrato-Programa a estabelecer entre a Lagos-em-Forma, E.M., S.A., e o Município de Lagos.
Ora, os Eleitos Locais estão subordinados à Constituição da República Portuguesa e à Lei, devendo atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé (artigo 266.º, n.º2 da CRP), vindo o princípio da imparcialidade consagrado também no artigo 9.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, que o autonomiza: “[a] Administração Pública deve tratar de forma imparcial aqueles que com ela entrem em relação, designadamente, considerando com objetividade todos e apenas os interesses relevantes no contexto decisório e adotando as soluções organizatórias e procedimentais indispensáveis à preservação da isenção administrativa e à confiança nessa isenção”, dispondo, ainda, o artigo 4.º do EEL, na sua redação atual, que “[n]o exercício das suas funções, os eleitos locais estão vinculados ao cumprimento dos seguintes princípios:
(…)
iv) Não intervir em processo administrativo, acto ou contrato de direito público ou privado nem participar na apresentação, discussão ou votação de assuntos em que tenha interesse ou intervenção, por si ou como representante ou gestor de negócios de outra pessoa, ou em que tenha interesse ou intervenção em idênticas qualidades o seu cônjuge, parente ou afim em linha recta ou até ao 2.º grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem viva em economia comum;
v) Não celebrar com a autarquia qualquer contrato, salvo de adesão; (…)”.
De resto, o próprio artigo 17.º do Regimento da Assembleia Municipal de Lagos dita que nenhum Membro da Assembleia Municipal possa participar na apresentação, discussão e votação de assuntos em que tenha interesse, por si ou como representante ou gestor de negócios de outra pessoa nem celebrar com a autarquia qualquer contrato, salvo de adesão.
A figura do impedimento encontra respaldo no artigo 69.º do CPA e, nas palavras de Luiz S. Cabral de Moncada, “[e]nquanto circunstâncias concretas os impedimentos distinguem-se das incompatibilidades designadamente por acumulação de cargos. Estas não dependem da posição relativa das pessoas singulares perante o procedimento nem de qualquer procedimento em concreto, mas apenas de uma qualidade abstractamente prevista na lei e aplicável sem qualquer juízo de aproximação ao caso concreto. Corporizam exigências legais e abstractas de imparcialidade que valem independentemente de se saber se são ou não aplicáveis a qualquer caso concreto. No caso das incompatibilidades a lei exclui a possibilidade de intervenção em abstracto. Quem nelas incorra não pode pura e simplesmente intervir. No caso dos impedimentos, a lei apenas veda a intervenção se no caso concreto ocorrerem determinadas circunstâncias ligadas à posição pessoal de cada interveniente, potencial ou real.”.
Visa-se, assim, com os impedimentos assegurar o desempenho imparcial e justo das suas funções na prossecução do interesse público e no respeito pelos direitos e deveres legalmente protegidos dos cidadãos, dos Eleitos Locais, como bem se percebe pelo capítulo em que vem inserido o artigo 69.º do CPA (Da relação Jurídica Procedimental), secção III, que tem como epígrafe “Das garantias de imparcialidade”.
De realçar que o interesse de que fala o artigo 69.º do CPA deve ser aferido objetivamente. Nas palavras de Pedro Costa Gonçalves, “[c]umpre sublinhar que este elemento subjetivo – a subsistência de um interesse -, não reclama a presença de um elemento psicológico, nem a comprovação de um efetivo interesse do titular do órgão ou agente. Isto porque a situação de impedimento não é determinada pela intencionalidade, que pode estar ausente, nem tão-pouco pelo resultado de um benefício efetivo para o agente, mas apenas pela verificação de uma situação objetiva que indicia, com suficiente precisão, o perigo ou o risco de uma contaminação da intervenção do agente. Pode, assim, dizer-se que se protege o valor da imparcialidade aparente”.
Acompanhando o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 2/2020 (Proc. n.º 88/18.8 BEPNF), de 12.12.2019: “…o mesmo acontece se descermos a um plano mais empírico, ou seja, ao do «conflito de interesses» que, no fundo, configura o caso típico de vida presente na mente do legislador como justificador do impedimento em análise. O conflito de interesses pressupõe, no mínimo, dois interesses; e haverá conflito quando – em termos efectivos ou meramente potenciais – a possibilidade de «satisfação plena de um» apenas se verificará à custa do sacrifício ou prejuízo – em maior ou menor medida — da satisfação plena do outro. A melhor forma de prevenir o conflito de interesses será empreender no sentido de evitar o surgimento do interesse cuja satisfação potencial ou efectiva prejudica ou sacrifica o interesse contraposto. A situação de potencial conflito de interesses surgirá sempre que um eleito local tenha, directa ouindirectamente, um interesse financeiro, económico, ou outro interesse pessoal, susceptível de comprometer a sua imparcialidade no contexto da celebração de um contrato com a respectiva autarquia, de tal forma que não lhe poderá ser atribuído o estatuto de «desinteressado».”
Ainda, neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Proc. n.º 66/15.9YFLSB), de 27.01.2016, “[t]ais princípios fazem impender sobre a Administração um específico dever de ponderação dos interesses em causa, mantendo a devida equidistância em relação ao confronto com os interesses dos particulares e, de outra banda, sobre si impende a obrigação de se abster de efectuar considerações sobre os aludidos interesses em função de valores estranhos à sua actividade.”
Assim, sempre que o agente se encontre envolvido em qualquer das situações previstas no artigo 69.º do CPA, ainda que não seja sua intenção dela beneficiar-se, a si mesmo ou aos terceiros mencionados no referido artigo, deve declarar-se impedido, comunicando tal facto ao presidente do respetivo órgão e suspender a sua atividade no procedimento (artigo 70.º do CPA), designadamente, abstendo-se de estar presente no momento da sua discussão e votação (artigo 55.º, n.º 6 do RJAL). Não obstante, deve tomar as medidas inadiáveis e urgentes que se imponham no caso, as quais, carecem, no entanto, de ratificação por parte do suplente ou pelo órgão, no caso de não existir suplente (cfr. artigo 71.º do CPA). Após a comunicação da declaração de impedimento, compete ao presidente do órgão conhecer da existência do impedimento e declará-lo fundadamente e por escrito (cfr. artigo 70.º do CPA). Verificado e declarado o impedimento, o membro impedido é imediatamente substituído pelo suplente ou, no caso de inexistir, o órgão funcionará sem o membro impedido (artigo 72.º do CPA).
Face ao exposto e, em ordem à salvaguarda da transparência que necessariamente deve nortear a atuação dos Eleitos Locais, e de harmonia com o citado artigo 69.º do CPA e 4.º do EEL, devem aqueles evitar criar situações em que haja risco ou quebra do dever de imparcialidade, razão pela qual, ainda que a legislação que regula os objetos dos temas em dissídio permita que os titulares dos órgãos do poder local integrem os órgãos sociais das empresas do município [cfr. alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º da Lei n.º 52/2019] e, mesmo que a intervenção do Senhor Presidente nas já referidas sessões não tenha configurado a emissão de qualquer voto, nem esteja contaminada por um qualquer interesse pessoal, a sua veste de Presidente do Conselho de Administração da já referida empresa local sempre implicaria que aquele se declarasse impedido de participar, enquanto Presidente da Câmara Municipal, nos suprarreferidos atos, levando a cabo o procedimento aludido nos artigos 70.º e 71.º do CPA e 55.º, n.º 6 do RJAL.
Conclusões:
– O Regime Jurídico da Atividade Empresarial Local e das Participações estabelece que os membros do órgão de administração das empresas locais são nomeados pela sua assembleia geral, competindo, por outro lado, ao órgão deliberativo da entidade pública participante designar o fiscal único da empresa local, sob proposta do órgão executivo; e, por outro lado, as entidades públicas participantes podem delegar poderes nas empresas locais, desde que esta faculdade conste expressamente na deliberação que determinou a sua constituição e nos respetivos estatutos;
– O Regime do Exercício de Funções por Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos refere que os titulares de cargos políticos, nos quais se inserem os membros dos órgãos executivos do poder local, exercem as suas funções em regime de exclusividade, sendo o seu exercício incompatível com quaisquer outras funções profissionais, bem como com a integração em corpos sociais de quaisquer pessoas coletivas de fins lucrativos, com exceção da integração em órgãos ou conselhos consultivos ou fiscalizadores de entidades públicas;
– Em ordem à salvaguarda da transparência que deve nortear a atuação dos Eleitos Locais, e de harmonia com os citados artigos 69.º do CPA e 4.º do EEL, devem aqueles evitar criar situações em que haja risco ou quebra do dever de imparcialidade;
Assim,
– Ainda que a intervenção do Senhor Presidente em sessões cujo objeto de discussão era relacionado com a atividade da referida empresa local, na qual configura como Presidente do Conselho de Administração, não tenha implicado a emissão de qualquer voto, nem exista qualquer intenção de o Senhor Presidente se beneficiar a si, ou a terceiros, esta sua veste de Presidente do Conselho de Administração sempre implicaria que aquele se declarasse impedido de participar na referida discussão, enquanto Presidente da Câmara Municipal, por ser suscetível de comprometer a sua imparcialidade, devendo ser levado a cabo o procedimento aludido nos artigos 70.º e 71.º do CPA e 55.º, n.º 6 do RJAL.
Sendo tudo o que cumpre informar.
A Advogada e Advogada Estagiária
(Filomena Girão e Filipa P. Silva)