Consulente:
Assembleia Municipal de Porto Santo
Data: outubro/2024
Palavras-Chave:
Questão:
A Consulente solicita Parecer, apresentando o seguinte quadro factual:
“No seguimento da publicação no Diário da República, Portaria n.º 185/2024/1, de 14 de agosto relativamente a possível conflito de interesses, incumbe-me a Exma. Senhora Presidente da Assembleia Municipal do Porto Santo, Dr.ª Fátima Silva, de solicitar a V. Exas. Vosso parecer, uma vez que a mesma, simultaneamente desempenha funções na Direção, como Presidente da Casa do Povo da Nossa Senhora da Piedade, sem renumeração e Presidente da Assembleia Municipal com senhas de presenças.
Havendo a possibilidade da Casa do Povo ter a concessão de subsídio ou Protocolo com o Município do Porto Santo haverá uma situação de conflito de Interesses?
Será suficiente a Presidente da Assembleia ausentar-se da Mesa da Assembleia Municipal, quando houver deliberações a serem tomadas que envolvam a Casa do Povo? Como por exemplo, Contratos de Programa?
Sendo a deliberação do orçamento do Município de máxima importância, a Presidente da Assembleia Municipal terá também de se ausentar, não votando a proposta, uma vez que a Câmara irá dar apoio financeiro à Casa do Povo?”
Discussão:
No caso vertente, analisar-se-á se se verifica algum conflito de interesses na participação da Senhora Presidente da Assembleia Municipal de Porto Santo, que é simultaneamente membro da Direção da Casa do Povo da Nossa Senhora da Piedade, enquanto Presidente, em sessões da Assembleia Municipal cuja ordem do dia verse sobre assuntos que digam respeito à referida Casa do Povo. Vejamos:
As Casas do Povo são associações a quem é reconhecido o estatuto de pessoa coletiva de utilidade pública, constituídas por tempo indeterminado com o objetivo de promover o desenvolvimento e o bem-estar das comunidades, especialmente as do meio rural (cfr. artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 4/82, na sua redação atual), tendo por finalidade desenvolver atividades de caráter social e cultural, com a participação dos interessados, e colaborar com o Estado e as autarquias, proporcionando-lhes o apoio que em cada caso se justifique, por forma a contribuírem para a resolução de problemas da população residente nas respetivas áreas – artigo 2.º, n.º1 do Decreto-Lei n.º4/82. As receitas das Casas do Povo são constituídas, entre outros, por subsídios do Estado ou de autarquias locais [cfr. alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto- Lei n.º 246/90, de 27 de julho, que altera o Regime Jurídico das Casas do Povo, no sentido de garantir a sua autonomia institucional].
Cumpre referir que o exercício dos cargos sociais é gratuito, sem prejuízo do direito à compensação das despesas dele resultantes, nos termos do n.º 3 do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 4/82.
Isto dito, atente-se na veste de “Presidente da Assembleia”, que, enquanto “eleito local” nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1.º, n.º 2 da Lei n.º 29/87, de 30 de julho, na sua redação atual (breviter, EEL), estará subordinada à Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP) e à Lei, devendo atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé (artigo 266.º, n.º 2 da CRP).
Por sua vez, o princípio da imparcialidade vem também consagrado no artigo 9.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, que o autonomiza: “[a] Administração Pública deve tratar de forma imparcial aqueles que com ela entrem em relação, designadamente, considerando com objetividade todos e apenas os interesses relevantes no contexto decisório e adotando as soluções organizatórias e procedimentais indispensáveis à preservação da isenção administrativa e à confiança nessa isenção”.
Neste conspecto, é mister analisar ainda o artigo 4.º do EEL, que estipula que os eleitos locais estão vinculados ao cumprimento de determinados princípios, no exercício das suas funções, nomeadamente a “[n]ão intervir em processo administrativo, acto ou contrato de direito público ou privado nem participar na apresentação, discussão ou votação de assuntos em que tenha interesse ou intervenção, por si ou como representante ou gestor de negócios de outra pessoa, ou em que tenha interesse ou intervenção em idênticas qualidades o seu cônjuge, parente ou afim em linha recta ou até ao 2.º grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem viva em economia comum;” [cfr. alínea iv)] e a “[n]ão celebrar com a autarquia qualquer contrato, salvo de adesão;” . Sufragando o mesmo entendimento, também os artigos 16.º e 17.º do Regimento da Assembleia Municipal de Porto Santo.
No caso concreto, estaremos perante uma situação em que tem lugar um impedimento e não uma incompatibilidade – uma vez que não se verifica a existência de uma proibição legalmente estabelecida de exercício em simultâneo de determinadas funções ou cargos, mas sim de determinadas causas objetivas, expressamente previstas na Lei, que se interpõem entre o titular do órgão e a matéria objeto de intervenção num concreto procedimento, pressupondo-se um potencial conflito de interesse.
Nas palavras de Luiz S. Cabral de Moncada, “[e]nquanto circunstâncias concretas os impedimentos distinguem-se das incompatibilidades designadamente por acumulação de cargos. Estas não dependem da posição relativa das pessoas singulares perante o procedimento nem de qualquer procedimento em concreto, mas apenas de uma qualidade abstractamente prevista na lei e aplicável sem qualquer juízo de aproximação ao caso concreto. Corporizam exigências legais e abstractas de imparcialidade que valem independentemente de se saber se são ou não aplicáveis a qualquer caso concreto. No caso das incompatibilidades a lei exclui a possibilidade de intervenção em abstracto. Quem nelas incorra não pode pura e simplesmente intervir. No caso dos impedimentos, a lei apenas veda a intervenção se no caso concreto ocorrerem determinadas circunstâncias ligadas à posição pessoal de cada interveniente, potencial ou real.”.
Visa-se, assim, com os impedimentos assegurar aos Eleitos Locais o desempenho imparcial e justo das suas funções na prossecução do interesse público e no respeito pelos direitos e deveres legalmente protegidos dos cidadãos.
O artigo 69.º do CPA, no qual se encontram uma série de casos de impedimento, menciona um “interesse”, que deve, no entanto, ser aferido objetivamente. Nas palavras de Pedro Costa Gonçalves, “[c]umpre sublinhar que este elemento subjetivo – a subsistência de um interesse -, não reclama a presença de um elemento psicológico, nem a comprovação de um efetivo interesse do titular do órgão ou agente. Isto porque a situação de impedimento não é determinada pela intencionalidade, que pode estar ausente, nem tão-pouco pelo resultado de um benefício efetivo para o agente, mas apenas pela verificação de uma situação objetiva que indicia, com suficiente precisão, o perigo ou o risco de uma contaminação da intervenção do agente. Pode, assim, dizer-se que se protege o valor da imparcialidade aparente”.
Acompanhando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Proc. n.º 66/15.9YFLSB), de 27.01.2016, “[t]ais princípios fazem impender sobre a Administração um específico dever de ponderação dos interesses em causa, mantendo a devida equidistância em relação ao confronto com os interesses dos particulares e, de outra banda, sobre si impende a obrigação de se abster de efectuar considerações sobre os aludidos interesses em função de valores estranhos à sua actividade.”
Ainda, neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 2/2020 (Proc. n.º 88/18.8 BEPNF), de 12.12.2019: “…o mesmo acontece se descermos a um plano mais empírico, ou seja, ao do «conflito de interesses» que, no fundo, configura o caso típico de vida presente na mente do legislador como justificador do impedimento em análise. O conflito de interesses pressupõe, no mínimo, dois interesses; e haverá conflito quando – em termos efectivos ou meramente potenciais – a possibilidade de «satisfação plena de um» apenas se verificará à custa do sacrifício ou prejuízo – em maior ou menor medida — da satisfação plena do outro. A melhor forma de prevenir o conflito de interesses será empreender no sentido de evitar o surgimento do interesse cuja satisfação potencial ou efectiva prejudica ou sacrifica o interesse contraposto. A situação de potencial conflito de interesses surgirá sempre que um eleito local tenha, directa ou indirectamente, um interesse financeiro, económico, ou outro interesse pessoal, susceptível de comprometer a sua imparcialidade no contexto da celebração de um contrato com a respectiva autarquia, de tal forma que não lhe poderá ser atribuído o estatuto de «desinteressado».”
Assim, sempre que o agente se encontre envolvido em qualquer uma das situações do artigo 69.º do CPA, ainda que não seja sua intenção beneficiar-se, ou aos terceiros mencionados no referido artigo, deve declarar-se impedido, comunicando tal facto ao presidente do respetivo órgão6 e suspendendo a sua atividade no procedimento (artigo 70.º do CPA), designadamente, abstendo- se de estar presente no momento da discussão e votação (artigo 55.º, n.º 6 do RJAL). Não obstante, deve tomar as medidas inadiáveis e urgentes que se imponham no caso, as quais, carecem, no entanto, de ratificação por parte do suplente ou pelo órgão, no caso de não existir suplente (cfr. artigo 71.º do CPA). Após a comunicação da declaração de impedimento, compete ao presidente do órgão conhecer da existência do impedimento e declará-lo fundadamente e por escrito (cfr. artigo 70.º do CPA). Verificado e declarado o impedimento, o membro impedido é imediatamente substituído pelo suplente ou, no caso de inexistir, o órgão funcionará sem o membro impedido (artigo 72.º do CPA).
Face ao exposto e, em ordem à salvaguarda da transparência que necessariamente deve nortear a atuação dos Eleitos Locais, e de harmonia com o citado artigo 69.º do CPA e 4.º do EEL, estes devem evitar criar situações em que haja risco ou quebra do dever de imparcialidade; nas hipóteses que nos vêm colocadas, nomeadamente quanto à atribuição de subsídios à Casa do Povo e respetiva aprovação no orçamento do município, bem como a celebração de contratos- programa ou outras deliberações que envolvam a referida Casa do Povo, a Exma. Senhora Presidente da Assembleia Municipal deve declarar-se impedida de neles participar, abstendo-se de estar presente, já que nestes assuntos em concreto, poderá não representar os interesses mais gerais do município, mas em particular os da Casa do Povo a que preside, na medida em que representará simultaneamente o órgão que beneficia do subsídio e o órgão que o atribui.
Conclusões:
– Os “eleitos locais”, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1.º, n.º 2 da Lei n.º 29/87, de 30 de julho, estão subordinados à Constituição da República Portuguesa e à Lei, devendo atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé (artigo 266.º, n.º 2 da CRP).
– Em ordem à salvaguarda da transparência e, de harmonia com os citados artigos 69.º do CPA e 4.º do EEL, os eleitos locais devem evitar criar situações em que haja risco ou quebra do dever de imparcialidade;
– Assim, ainda que não se verifique incompatibilidade em cumular as funções de Presidente da Direção da Casa do Povo da Nossa Senhora da Piedade, não remunerada, e Presidente da Assembleia Municipal e, bem assim, que se possa concluir pela inexistência de um qualquer interesse pessoal da parte da Exma. Senhora Presidente da Assembleia Municipal, deve a mesma declarar-se impedida e abster-se de estar presente nos momentos da assembleia municipal em que estejam em causa disposições relativas à Casa do Povo que preside, uma vez que se poderá duvidar da sua imparcialidade, podendo, ademais, estar em causa um potencial conflito de interesses.
Sendo tudo o que cumpre informar.
A Advogada e Advogada Estagiária,
(Filomena Girão e Filipa P. Silva)